Documento 1


Para Kafka

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Do ponto de vista onde eu estou
Não há perspectiva para baixo.
Este é o fim do poço da mediocridade,
é ponto final de quem ama o desespero.
Tenho como vizinhos de porta o verme e a política
e tenho admirado tanto os verdadeiros criminosos!
Pablo Escobar, Al Capone, Beira-mar.
Admiro mais ainda os de ficção,
Don Corleone, o jovem Alex...
Gente que verdadeiramente suja de sangue as mãos,
que esquarteja a sociedade e lhe morde o pescoço.
Heróis são aqueles que matam sem a hipocrisia do discurso,
sem proferir o novo plano curricular do MEC.
Sem ter em mãos a cartilha da constituição.
Todos os outros são uma farsa.
Talvez não heróis, mas mais dignos do que eu.
Mais verdadeiros do que eu e bem menos institucionalizados.
Na política, só há chacais, hienas,
devoradores covardes da parcela da sociedade
que já está morta.
Onde eu estou, bem, aonde me encontro,
sou um artrópode escondido
debaixo da carapaça de três mil anos de boas intenções.
Nem aracnídeo, nem viciado, nem hippie - Artrópode!
Minha classe devora da sociedade aquilo que já foi devorado.
Um besouro do esterco que emaranha a mácula e o crime,
soldando-os com uma cola de cinismo e preguiça
que se regurgita melhor no passar dos anos.
A metamorfose Kafkiana é a investidura do cargo,
é a pedagogia. É o batismo. O casamento.
Ser inseto é pertencer ao departamento de RH.
Orientador educacional e atendimento ao cliente.
Os agentes sociais depositam ovos quando copulam
com os relatórios e as canetas Bic e Checkbox
fecundando a carne rota dos excluídos,
dos marginalizados, dos oprimidos.
De todos estes cadáveres que outrora em vida
foram trucidados, retalhados, chupados e exauridos
pelos verdadeiros assassinos. Aqueles melhores do que nós
até a última gota de trabalho e dignidade.
Nós ficamos com a sobra, com aquele pequeno prazer
de ver gente menor do que a gente, ser menos do que a gente.
Existe a religião e o judiciário, com seu direito de matar,
de pilhar, de estupro, pedofilia e privação.
O canibalismo amoroso natural da humanidade.
Abaixo destes estão seus filhos: senadores,
advogados, grandes corporações, policiais
e seu direito de vender, prostituir e torturar. Estes,
que aliados aos médicos mantêm a peste em seu devido lugar.
Depois os professores e toda a mediocridade
das escolas, postos de saúde e defensores públicos,
agentes em geral. Prefeituras, vereadores.
Uma coleção de gente tão feia
que fica feio escrever em verso.
Abaixo deles, onde nada mais pode estar abaixo,
eu. Aquele que não representa nada. Que está
por estar e ninguém sabe porque está. O artrópode.
Toda cadeia alimentar tem a sua base, mas,
dói mesmo saber que eu e meus colegas
da ordem dos parasitas, além de comer e fecundar
sobre restos de um país que apodreceu
ainda caga pedaços de esperança
em cima do sonho dos mortos.
Jônatas Luis Maria

A Flor da Pele



— Você é a nação. Nossa nação.
O país com quem me deito.
Perco-me em tuas avenidas 
e interiores. E calabouços.

Escondendo-me 
em tuas articulações 
de guerra civil.

— Você é a guerra.
e sobre teu peito, eu sou a paz.

Tua face é de corcéis febris
soltos pelo campo
e violência.

Nossos corpos de gelo
se misturam no tempo...

— E você é a arte
causando inundações.

— Correndo na veia pós-moderna.
Explodindo o coração
da ditadura.

Somos silêncio!
E ausência.

Ausência é tudo aquilo que temos

e o tempo que havia antes
atravessa nosso corpo e segue
quebrando as janelas.

— Você é a beleza
e a destruição.
Enchente no meu corpo de barro.

— Nossas linhas se cruzam em design surreal
e no entanto...
— Temos fome. Uma fome desmedida de silêncios.

(...)

Tua boca é de terra.
Espaço de caça, e nascimentos.
Mas teu rosto é um deserto
onde a gente se perde de sede.

— Tua boca é de domingos.
Relógio de sol, nos teus olhos de partida.
Teu sangrar e teu sorrir
nem que fosse tímido.

— Desabam prédios
Em nossos corpos de metrópole,
deixando poeira e timidez
num sorriso de finais.

E somos democracia
perambulando pelos bares.

— O mundo acabou em nós dois.
e somos o que somos

tudo desabou no quintal, no universo,
e o que mais forem nossos corpos abraçados.

— Teus olhos se põem com a lua
e sacrificamos montanhas 
e compomos canções e você me ensina a dançar
para sermos rituais à beira mar.

—E quem é o mar?
Quem é o pescador? Quem é a pesca?
Em qual plano vivemos realidade
e aonde temos importância?

— Somos areia.
— Somos as conchas...
— E somos o barco...
— e o sal.

— Que são de sal as cidades
circulando em nosso sangue,
        e de ferro os anjos da guarda
            resgatando a inocência
de abismos profundos.

— Precisamos repartir o pão.
E unir os corpos.
Quantos sonhos em sonhos
            vivemos?

— Sem você sou a noite.
— Sem você sou o dia.

— Aqui em tua pele estão todas as florestas
todos os pássaros e flores
Tu – Amazônia. Pantanal e fera
que às vezes é sertão e me abraça
em secura de sede.

— Espíritos sem água
na América do Norte.

(...)

Você é uma igreja.
Templo abandonado
À minha pele de espinhos.

Teu altar é de rosas
e espadas.
Espadas que cortam rosas.
Rosas que derrubam espadas.

Nós estamos em tudo.

— Você é a música!

— Somos orquestras.
Orquestras de silêncio.

— Teu corpo é de planetas.

— Somos corpos celestes. Recém nascidos
em algum lugar e tudo muda quando nos chocamos,
rompendo correntes de Kitnets e seriado de TV.

(...)

Você é um mendigo;
Um homem sem nada. 
Num plano estranho. 
No lugar errado
aonde o tempo é tolice.

— E você é a estratégia.
Em tua arquitetura caótica
sou um mendigo
lambendo tuas periferias.

— Um corpo sozinho
vagando nas ruas d’um corpo lunático.
Dois corpos, dois pontos perdidos...
— No espaço dos homens grandiosos.

Eu nos hospícios. Nos bueiros
e quartos de quimioterapia.
Enquanto tu era a vida
nos regimes fascistas.

Foste a indústria de cada dia,
e eu o operário de todos dias.

— Escravos, índios e imigrantes...
— Nas minas de diamante
da coroa portuguesa.

(...)

No tempo dos homens.
No templo
dos homens.
— Até o último deixar de rezar.

— No homem...
— Enquanto houvesse
Homem...
— Havia esperança.

— Você é o amor!
— Somos um suspiro.
— Uma gota.
— O sonho
— do sonho.

— No silêncio.
onde todas sinfonias são ouvidas.
Na ausência
aonde tudo é tocado.

— Você é a linguagem.
Torre de Babel nos albergues de estudantes.

— Somos órbitas cruzadas nas ruas,
avenidas de caos e luz. Onde a geometria
é a corrupção de meninas estrangeiras.

Anúncios de jornal
no homem noturno
de apartamentos.

— Você é um grito.
Um grito na solidão dos bares.
Das pensões e da cachaça
entregue na tribo dos índios.

— Somos os filhos do sol.
Latinos do paraíso tropical.

— Índios.

— E você é o cacique.
Perdido em euforia
na dança da chuva.

E chove sobre nós todas as cores. 

— Somos espelhos.
— Espelhos no prisma.

— Nossa trama é de febres.
Ardem nossos corpos na febre de dias de cão.
Lobos uivando a noite boêmia.
O que fizemos de nossas vidas?

— É aquilo que pulsa em pintura
rupestre no teu corpo africano.
No som dos rituais indizíveis.
No homem em êxtase...

— Com aquilo que lhe sustenta
a fome de respostas.

— Você é a mão febril de martelos.
Esta é razão da minha febre.
Minha insônia, na terra do sono.
Uma insígnia tatuada na testa.

Sinais de fumaça e apitos.
Formigas 
que mal sabem o que fazem.
Tenho febre e deliro no teu seio capitalista.

— Onde estou o tempo inteiro?

— Quando penso no tempo,
O tempo nos transcorre
E escorre você pela cama
Num transe amarelo natimorto
            de Van Gogh.

— Busco meus guias nas poças d’água,
Onde voam submersos 
os filhos de Hiroshima,
numa tempestade de incoerências.

Navego nas poças d’água
entre grandes ditadores
e a água balança na música
imparcial dos mísseis.

E na inércia da água
misturo-me ao sangue das crianças
que vejo chorar no fundo dos guetos,
das favelas e da democracia.

E você é a pólvora. O plutônio.
Fogo artificial queimando sonhos
e famílias em minha pele hereditária.
— Um soldado.
No fundo do beco.
Um soldado sozinho...
— No barulho dos tanques.

— No caos.
— No ódio.

Ocupo de pedras os espaços vazios
Daquilo que ignorei para chorar depois.

— Você é a rocha.
A rocha que sangra água que sou.
Em teu pêlo de rocha escorro rio de mistérios,
Formando caminhos sinuosos na cultura dos povos.

— Somos notas de jazz
Entrecortando ruas do submundo.
Numa velocidade de cocaína e medo.

— Somos a chuva,
E chove para lavar o sangue.
Limpar o óleo nos finais de semana.

Livrar as nuvens do ácido nocivo,
das chaminés a queimar as penas
das aves claustrofóbicas
que comemos sorridentes.

— Somos liberdade e arte
Riscados no muro das penitenciárias.

—Sussurros no espaço do eco. 

— Somos abraço...
— E displicência.

— Somos e estamos
Grudados no verbo que viaja e vê
As paredes sujas, 
dos asilos esquecidos.

— Nas histórias de velhos sem sorte.
Fomos os de antes
e seremos os de amanhã.

Somos e estamos. Implícitos.
Excêntricos numa tela 
que se apaga .

— Apreciados e agraciados por estrelas
e buracos negros dividindo o mundo
em oriente e ocidente.

— Planetas e gente, e espelhos.
E gente que é gente
E é humano e é pedra e é arte.

— Mesmo sem petróleo!
Ou na troca de moedas e racismos
de narcisos que julgam 
mais valiosos seus vícios.

— Donos da carne (dos outros) 
e tão somente dela.

(...)

— Você é a inocência.
Minha terra povoada de crianças.
— Somos utopia.
— E o direito de viver!

— Não se pode pregar o amor
Nas ruas de luzes publicitárias.

— Somos o delírio eterno.

— Tentando compreender a igualdade entre os homens.

— Somos civilização.

(...)

— Frio. Tenho frio.

— O frio da guerra fria...

— Somos tolos!

— O futuro...
— O futuro.
— O futuro são videiras que florescem.
É ave que voa livre
pelo céu azul.
— Nossos filhos
correndo soltos pelas flores.

Nossos corpos são povoados
de abismos e quedas infinitas...
O que será de nós?

— Ah, teu corpo palpita
e se excita na luz da manhã.

Há um calor de suores que me agita
                    em terremotos.

— Um deus asteca passando pela terra
semeando vulcões.

— Meus mistérios se perdem nas estações
    e o vento me desfaz, fazendo-me lua.

(...)

— Teu silêncio faz dançar as flores.

— A flor da pele está na pele
    e o desabrochar da flor da pele...
— Quando a pele se toca...
—Nos transforma em deuses.

Jônatas Luis Maria

Sateré Mawé (Terra Brasil)


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No oculto sombroso da floresta imaculada
tu nasceste fruto das tempestades tropicais.
Suçuarana pantanal, cor de terra e de serrado,
ecoa na voz dos povos o teu grito neonatal.

Semideusa em cujas veias largas do Amazonas
corre e transcorre a força bruta dos biomas.
Teu corpo fortaleza é tronco de araucárias
mas tua pele se arranha numa enxurrada de bromélias.

Tuas tocas, Tocantins, teus descampados pampas
teus olhares negros, verdes e azuis estampam
revoada crepuscular de araras, silêncio mortal de harpias.

Tu és uma só, ao mesmo tempo em que és muitas
e tuas muitas faces são todas as faces
de quem no corpo ostenta, a maior flora do planeta.

Esse teu corpo é índio, bruto, belo – Guraní-Kaiowá
que guarda lendas de todas as tribos, e que transforma
os olhos dos teus filhos nos olhos do Guaraná.

Jônatas Luis Maria

Emília

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Peripécia
esse jogo de esconde-esconde.
Malícia em que se disfarça olhares.
Na roda de passar anel sentir tuas mãos
e depois sorrir timidez
com as mãos vazias.


É quase lúdico percorrer às cegas
tua silhueta fugidia nos espaços,
entremeio de estações.
Um pouco mais triste a vizinhança
dessa casa de brinquedos.

Quão sombrio é o conto de fadas
de saber tanta mágoa em tuas orações?
Que temor incompreensível da noite
quando ao acender as luzes num susto
tudo que se encontra é sombra e eco!

Esse quebra-cabeças incompleto
das peças que faltam, paisagem rompida,
cena eternamente sem fim.
Para os dias de chuva restam lápis de cor,
caixa de dominós para enfileirar em letras
e derrubar inteira a palavra adeus.

Ao lado da cama velhos cadernos,
noutro lado cartas de amor.
Que lugar para guardar segredos,
senão o criado-mudo?

Sobre a cabeceira um anjo de gesso,
cujas asas foram coladas, sem mais voejar,
repousa suas mãos unidas em prece
e segura um retrato de tardes distantes.

Lá no canto oposto do quarto
repousa um velho palhaço de corda.
Recorda. Tem olhos redondos de medo
e traz estampado na roupa puída
a pasma e embotada palavra
Alegria.


Jônatas Luis Maria

Sobre todos os monstros

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Dança uma legião de demônios no recinto.
Catam valquírias a canção do amanhã.
Amanhã não há.
Sons terríveis cintilantes
arrebatam a tristeza nos meus olhos.
Escorre humor vítreo colorind’o chão.


As bruxas soltas na cozinha
preparam um caldo de caos tremendo.
Desossam lembranças sobre a mesa de jantar,
expondo a todos o mais íntimo de mim.
Porque segredos já não há.
Facas cegas aniquiladas
mastigam memórias e um sonso adeus
que nunca tem fim.

Esses dragões queimando livros,
vermes devorando tapetes. Rios
de mágoa desarrumando a cama.
Não há areia nos meus olhos abertos.
A mão pesada dos deuses tropicais
desata os nós do meu destino
estica uma linha reta em meus cardiogramas.

E as caveiras na sala de estar, bebem o vinho
que guardei para os dias especiais.
Solfejam bebedeiras que esqueci,
mas o remorso já não há.
Mariposas desacatam a’utoridade das luzes
e pousam sobre mim seu pó de reticências...

Anjos da horda cabalística em guerra,
sobre os espinhos de meu cadáver,
alheios a este escuro observar.
Porque a esperança já não há.
Trespassam espadas de apocalipse
entre entranhas da fotografia
e tudo se dilacera enfim.
Tudo apodrece, e na TV
um padre me diz amém.


Jônatas Luis Maria
Pode ser meu nome, só meu peso,
só esmero e luxúria. Capricho
de quem se solta no abismo.
Pode ser a cor das paredes, brancas,
dos teus olhos claros, tua pele escura,
toda estética, mágoa ou toda coisa e tal.


Pode ser minha tristeza entrelaçada
ao trigo dourado e seco sobre a mesa.
Pode ser a fumaça dos incêndios
queimando camadas de meu vazio.
Um vento ameno, ao menos, de balançar
estas suaves catacumbas no sofá.

Pode ser a casa, ou ainda a ausência
que teu corpo causa na casa, lacerante.
Pode ser o espanhol da América Latina
que tão somente nós não cantamos.
Pode não ser só saudade,
mas não parece.

Inquietude do corpo e quietude da taça
de quem adormece. Pode até não ser amor,
mas e se não fosse?
Pode ser canção que lembra, canção que esquece.
Poderia haver canção, se você estivesse.
E haver chama, e cama e tudo
e trama, drama e nada.

Podem ser as gavetas, as prateleiras,
esconderijos mais ocultos de mim.
Pode acontecer o encontro casual
entre um pássaro noturno e as estrelas.
E não mais que de repente
teu retrato na estante vira ilusão,
esboço num papel rabiscado.

Podem ser as gravatas, a torradeira,
estragos abruptos causados pelo fim.
Pode naquele momento fatal
das nuvens sobrepostas ocultando sol,
não mais que de repente teu nome equivocado
ser a pronuncia
que vem antes da chuva.


Jônatas Luis Maria

Dos Remorsos

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Aos senhores donos do meu corpo
desculpe se há nele um eu que s’aniquila.
Mas é que pra vocês, sou apenas fonte
uma fonte que delira. E só delira.


Há algo em mim que te machuca e é meu ego.
Essa nuvem do que sou, por deus, é um demônio.
Farpa diminuta que espinha agride dilacera
e que pela vida inteira se suicida e desespera.

Perdão pelo meu suicídio diário.
Perdão pelo abraço e por minha partida.
Não sou eu, mas é sim a vida
quem aos poucos me vai levando.

Perdão se não sou quem é o dono
Dessa artimanha de se criar e se morrer.
Perdão se minha mão não há de socorrer
porque sou a morte e assim é meu viver.

Espectador que já não é, coisa entre as coisas.
Coisa alguma mas que mata sem remorso
qualquer um de nós que por ventura
se esconda pelos cantos e meu canto
é o canto de quem me dá a mão.


Jônatas Luis Maria

Para Todos.

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Quem grita para a tempestade:
traga-me amor e morte;
Quem com a rosa se dilacera,
que a carne de poesia lhe conforte.


E se tens no coração o ninho d’um pássaro,
que em ti se desacampe essa fúria de ventos.
Quem aos passos de pés sangrentos
ouve a esfinge que no ouvido sussurra...

Quem tem sonhos conscientes
e morre de vontades
de morrer.
Quem sonha com as tardes
e quem sonha sem saber...

Quem amalgamo silencia
os diálogos inacabados,
quem com a pele balbucia
aquele choro de amanhecer...

E quem constrói em si
o desejo de dizer: Amor e morte;
Que possa também gritar
que faça tu de mim
tudo aquilo que quiser.


Jônatas Luis Maria
Visto a enorme insensatez das nuvens,
decomponho a chuva
e recolho a mim, torpe e austero,
abraçado ao vasto indiferente azul do céu.

Vem ao longe, por um lado, uma frieza nublada
e esvazia segredos. Transforma a pele
nos sussurros ineficazes do sobrevindo.
Enquanto por outro lado, silente, uma limpeza
feita de luz e tarde aguarda seu abraço fatal.

É de repente tão de repente que escurece.
O dia se fecha como se fecham os olhos
na solidão imprópria das tardes quentes.
É de repente tão de repente que escurece.

Retidão exata das precipitações
exalando terroso odor de dia desacontecido.
A memória distante dança e se mistura no vento,
balança na infância infinita e longínqua.

Há no ar, portanto, resguardada ciranda.
Traz consigo inexplicável saudade,
como se viesse carregando há séculos
as memórias do mundo inteiro.

No mais tudo é silencio no esperar da chuva.
No mais tudo é nudez.
Retidão exata das precipitações.


Jônatas Luis Maria

A Flor Imaculada



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O suicídio cotidiano é perfeito.
Disfarçado em forma e cor
pelas contas mal pagas, por amores perdidos.
A luz do dia se apaga
em noite tragada de noite bebida.

É como se delicada a infância voltasse
na luz do sol pela ranhura da janela
igual tempo parado em sua porta
como um filho voltando pra casa.

Levar os brinquedos do amor
na brincadeira de viver saltimbanco.
Descolar faces mil que se colaram
aos dias descoloridos.
Contrastam máscaras, sem o rosto,
com a marca dos olhos que se foram.

Cresce a mágoa eterna no entornar da noite
Até o entorno da manhã seguinte.
Na barba mal feita, no cabelo curto.
Nas vísceras gemendo o desabrochar da fome.

Que a glória dos dias leve-nos daqui!
Quisera eu ser uma mesa, um papel.
Quisera ser a tinta destas linhas, ou pedra.
Qualquer coisa inanimada, tão quieta,
sem resquício de história
no desdobrar inútil da existência.

Ansiedade de viver por ansiedade de morrer.
Mostro-me as pessoas disfarçado atrás da mobília.
Mostro-me a mobília disfarçado atrás das pessoas.
Quisera ser lágrima nos olhos de quem amei.
Quisera ser indigente nas ruas da metrópole,
ou o sorriso do palhaço mais triste que existe.

E temos moedas, botões, insígnias.
Pés descalços, mãos calejadas,
trompetes de improvisar a escuridão
e pedras para quebrar invernos.

Foi-nos dado um futuro para matarmos!
Suas nuances alvejadas, a alvura enegrecida
a luta nos foi privada, e a causa se perdeu.
Moramos em altos edifícios
e só as bruxas nos alcançam.

Fomos presenteados com lápides, pregos, cirandas.
Agraciados com prata, fogo e algodão.
Nossas armas automáticas não disparam.
Nossos disparos se dispersam em disparates
e díspares marchamos no céu cinzento
lamentando o dia em que caímos das estrelas.

A noite perdura, mas sem a causa.
A vida perdura, mas sem paixão.

Nenhum movimento existe! Nenhum!
Tudo estanque calado em abismo profundo.
Só o sol escaldante escandaloso deserto.
Rochedos ressurgem de todos os olhos,
tornados e ciclones em todos os silêncios
e o anjo do infinito repousa sobre pedras.

Lá estamos entre seus cabelos, suas preces.
Adiante sua face faz-se nos encontrar dançando.
Intenso jardim de tinturas frescas, verossimilhanças.
Viscosidade inquieta na existência em óleo sobre tela.
Precipitam-se tempestades nos sorrisos tímidos
igual rosa esquecida entre os mundos.

Repousamos solenes na linguagem da fala.
Refletimos o pesar da noite malfadada,
vislumbramos a fada velha sem desejos,
e solfejamos canções esquecidas
no peito gelado da modernidade.

É tão rara a vida! E jogamos pela janela.
Tão frágil! E nossos filhos na sarjeta.
Nem clero, nem laboratório, nem bacanais aflitos.
Nem governos, nem fronteiras universais!

Medo, medo, medo! É tudo medo nos corpos!
Nossas carcaças flutuam em canções eletrônicas
nos infartos de uma bossa nova esquecida.
O apocalipse é orquestra sinfônica pós-moderna
ecoando a eternidade tão louca do caos.

A boca do homem é medo constante inigualável
e Constância corta asas do destino recorrente infalível,
e bêbados cantamos o hino da independência imaginária.

A canção consola a’lma sem memórias
e tudo vai girando normal inatingível digital e prece,
D’um sofrimento sem igual que consta
Entre as linhas do manifesto comunista.

Essa raça segue consternada ao exílio de existir.
Proclama pela boca embriagada a carência sobreviva.
Desata no discurso do passado, o presente natimorto
e liberta num jazz endoidecido o futuro desigual de toda gente.

Gastamos a cada manhã o talento de se fazer arte marginalizada.
Galgamos a manha de sobreviver por pratos de comida.
Atentos à fúria de deuses esquecidos
estamos mortos,
mas procuramos pela vida.


Jônatas Luis Maria

Anima Anônima - Ensaio sobre o fim


Não tarda deixa de bater o coração.
Sem haver olhos para orquídeas, nem velhas construções.
Sem se ter ouvido para sabiás, canários ou canções.
Não tarda falhar instinto primitivo ou consciência universal.
O que nos perturba deixará de perturbar. Quem nos ama
não mais amará, e quem tu amas não amarás.


Não tarda cada movimento peculiar do mundo
deixar de se mover e não se movendo perder o sentido.
Nada poderá ser sentido, e o que sentes não sentirás.
Cessar-se-á a sensação de ser e de estar.
Não tarda o silêncio que nos é negado
ser moto continuo perpétuo do que já não há.

Não tarda a questão mais complexa ficar sem resposta
e a arte em si deixar de trazer salvação particular.
Não haverá coisa inanimada nem coisa que se move.
Não tarda sermos incapazes de cantar ou aplaudir.
Nossas mãos nada poderão tecer, compor ou esculpir.
Bocas serão silenciadas e olhos serão apagados.
Ouvidos inaudíveis até o não haver.

Não tarda o que é prolixo ser sintético,
O sintético diminuto, abreviação e nada.
Paixões serão histórias, depois nem isso.
Tapas não serão, beijos não serão.
Não haverá balanço, ou criança para balançar.
Não tarda não haverá pôr-do-sol nem carinho
nem lembrança.

Jônatas Luis Maria

Freud, Jung, a morte e o teatro


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Sempre que me acomodo à janela nos dias de chuva
espero ver o fim do mundo.
Se ando de mãos dadas com a providência,
vez ou outra me beijo com o demônio.
Entidade absoluta do caos.


E a larva da ansiedade, a quem tudo pertence,
que espere. Serei logo seu inteiro amante
de laços e abraços em romântica gaveta.
De fora, arquitetura intensa. Cobre e mármore.
Por dentro, escuridão.

Mas que espere! Por hora abro toda casa
deixo entrar a luz que a luz salvará
os muitos pós-modernos que somos.
Infinitos personagens de múltiplas fases
nos absurdos, épicos
e crueldades de arena.

Eu sou Hugo, mas por aí me chamam Werther.
Há quem diga somos Ida, e isso é a verdade.
Para nós, legião de uma única angustia,
resta a cena e a certeza de todos os finais:
A face obstinada de três bruxas sorridentes.

Jônatas Luis Maria
Estilhaço das tramas,
meu cansaço.
Remoído na cama
sol de concreto, no terraço.

Sal de remorsos.
Minha lama.
Algoz violento, o diário
aniquilando eu e você
torpor do tédio!
Livre seria o galope
não fosse a cegueira do bicho
rumando sem destino,
sem rumo, sem norte sem nada.
Mate quem fez a canção.
em suma sempre lembra você
face que esqueci. Eu sou um Narciso
enlouquecido entre espelhos de Alice.

Jônatas Luis Maria
Por aí
No entrave das bocas,
na menina dos olhos
Bruxaria
soltando miados.

Tranca nas portas,
travas na língua
Medo
escondido nos cantos.
Entre ossos do oficio,
Partos e necrotérios
Caos
Pairando metáforas.
Num gole – Numa rua,
em ziguezague sem norte
Nós
(ul)trajando destino

Jônatas Luis Maria

Para Hilda e Lispector

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Tempo de desaparecer,
recolher asas ao ninho austero.
Tempo da janela donde espero
pelo menos a luz do amanhecer.


Lembro um dia em frente ao mar
esperar nas horas tua chegada
até que se cessaram as ondas.
Até que se acabou o mar.

Sonhei um encontro e senti teu perfume
ainda no sonho percebi a ilusão tamanha.
Sonhei que morri uma morte tremenda,
assim acordei e não era pó, mas fragmento.

Tempo de desaparecer não é meu tempo.
É pessoa que passa e é perfume,
tu que não veio junto àquelas ondas.
O mar se acabou, não veio a luz do dia
e se desapareço, é em tua escuridão.

 Jônatas Luis Maria
Borboletas na tempestade
assim o pensamento se recolhe.
Vida junkie em meio à chuva
e um café com gosto de antiontem
que fica para amanhã.

Reticências são mais que infinitos,
são a vida inteira na fumaça de fumar.
Amigos compõem acordes noite adentro,
estudam ciências ocultas, poemas indiziveis.
Escutam seus fantasmas e seu eu lírico.
Eu lírico tento me decompor nas estrelas.

Não não não! Do pó ao pó só metáfora,
Metafísica das utopias quando se toma trago.
Brainstorm nos banheiros de botecos.
Bestialidades à mesa familiar de direita
quando nascemos à esquerda dessa mesa.

Eu sou o "you're not" nas aulas de inglês.
Rien de rien nas calçadas parisienses,
Rimbaud não nascido, Mill dos hospícios.
Coronel de ladeira abaixo.

Borboletas na tempestade
e o sol dos meus olhos jamais se põe.
Casulos em pantone, pedaços de Molière,
Modiglianis e restos de comida pela casa.
Resiliências, resumos e raticidas reunidos,
que foi a vida senão resquícios? Remédios para ansiedade.

Quantas vezes morri sem que ninguém percebesse?
Todas elas. Envelheço de segunda à quinta,
reservo as sextas para os velórios. Aos sábados sou enterro
e aos domingos esquecimento.
Sou blasè, Balzac e Mallarmé,
mas nunca fui um Robinson Crusoe.
Henry sem Paris, Miller sem mulher,
mulher sem ser Cecília.

Ciranda sem a infância para brincar.
Borboletas na tempestade
são todo pensamento que se estraçalha
em meio a essa chuva de domingos.
Borboletas na tempestade
tem nos cantos melhor repouso.

Jônatas Luis Maria

Existir


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As rosas de maio não se arrependem.
Amadurecem sem desejos,
sem ressentimentos.


Os dias do sul são distantes do sol.
É terra isolada do mundo,
pensamento que delira nas nuvens.

Outubro tem a cor de outubro.
Um tom sem nome nem mesura,
acordes aquosos escorrendo.
São relógios de Dalí.

Aos que restam, silentes e distantes
fica um gosto de lonjuras.
Ausência do mundo dentro do mundo.
Cortina de segredos ante a face,
e a foice desliza no agridoce dos olhos.

Flor do pântano no pranto de quem fica.
Deixam-se todas horas a navegar
por baías de tristeza até o fim do mar.
Falua do coração descuidado, sem farol,
sequer estrela guia, que navega entre escuridões.

Jônatas Luis Maria
As luzes dos postes ofuscadas de neblina
são fantasmas.
A própria névoa é um fantasma
e meu cadáver à janela, transita
nas calçadas manchadas de crime, acidentes,
tropeços e desencontros.
Bem-vinda a chuva que leva manchas,
que apaga indícios.
Bem-vindo outono que acinzenta
minha cara embriagada.
Aniquila remorsos da face a terra.

E que sejam meses em que a noite existe
para sempre ocultado qualquer claridade,
qualquer clarividência.
Porque meu cadáver pretende
nada ansiar.
Que a descoloração dos dias esconda crimes.
Que a exatidão das folhas que desabam
oculte a mágoa nos meus olhos que escurecem.
Deixe que a chuva lave ilusões, lave calçadas,
e o sangue dos atropelamentos e assassinatos.
Que reavive o cheiro do mofo, dos bueiros,
dos cafés sujos e mal amados
onde há séculos me decomponho.
Que o vendaval diário esfrie as xícaras
e o carnaval de inverno redesenhe as máscaras.
Que a cidade se tranque, se esconda, feneça
e todo cheiro ocre cause desconforto à mesa.
Que as paredes escorram vicissitudes, máculas,
desalento.
Como há de ser o frio no corpo de quem falece.
Que os cemitérios tenham ares de abandono
para o deleite das estatuas.
Que o outono traga, como há de ser,
a limpeza sobrenatural das adegas,
o sono das florestas e o adormecer de videiras.
Que os vidros embacem, o gesso apodreça
e a porta das moradas se congele.
Que o mundo adormeça
na canção murmurosa dos demônios.

 Jônatas Luis Maria
Olha esse céu, meu amor. Como é claro esse dia.
Carregado de essências de uma infância
que ficou no século passado.
Parece que se pertence ao DNA das coisas.
Cada cheiro, cada movimento, cada brisa
e farfalhar de árvores, se transforma em lembrança.
Mas não propriamente dita, visível,
talvez lembrança que sequer acontecera,
talvez sutil demais para qualquer imagem.
Ou talvez tão bela, que dá medo reviver.
Em todo esse azul derramado sobre o mundo,
em meio a paisagem verde clara, levemente ociosa,
uma saudade doce, delicada e vagarosa
paira sobre silêncios e quietudes lilases.
Sem pássaros, sem brisa ou voz.
Parece que se ouve a quietude dos amores
passados que descansam e dormem
sobre o peito vacilante de amores futuros.
Hoje, parece que se encerra toda uma era.
Silenciosa passagem do tempo
como há de ser tudo aquilo que é finitude.
Hoje não há que ouvir, o mundo é silêncio.
Não há que ver, porque tudo é sentimento.
Até a distância infinita entre as flores
parece proximidade de mãos entrelaçadas
que passeiam leves e silentes nas praças
de outras cidades.
Seria inteiro esse dia tão imaculado
a resiliência de um coração partido?
Ou seria a solidão das flores sobre as mesas domésticas
nas casas vazias do mundo?
Quem poderia saber? Quem meu amor?
Um pensamento intimista e profundo
certamente saberia.
Talvez seja melhor apenas divagar
e devagar, como todo esse azul,
ser somente parte desta cena momentânea
e infinitamente quieta.
Hoje, pensar profunda e intimamente
traria à tona a saudade de uma vida inteira.


 Jônatas Luis Maria

Simulacro



Quem és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.
Do Desejo - Hilda Hilst
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Das vezes em que o quarto se torna calabouço
é para que eu sonhe sobre a laje fria
do leito dos amores que enterrei.

Quando a tempestade urra como demônios
escurecida estraçalha janelas,
preparo um café para melhor receber o fim do mundo.

Todo um arsenal a espera de oponentes,
abro a porta e só encontro amigos. A pólvora
favorável à implosão, fará inveja ao pôr do sol.

Cada fantasma que sai das gavetas e esquinas
troca minhas músicas, tranca meus sentidos,
revira meus miúdos equívocos.

Não trazem cerveja, não trazem cicuta.

Essa cova que se abre na borda dos dias
rasga a mão fadada revirar a terra íntima da idade
e já se foram três palmos, palmas pra mim – lavrador incansável.

Aos pássaros resiliência. Aos vermes – Tudo.
Que morada é essa? Que consome meus centavos
que é propícia a se plantar as flores e às vezes, chora comigo.

Que sonhos estranhos se sonha sobre cadáveres
e pelas estantes, entre livros, esse poço que cheira à saudade.
As taças de vinho, as panelas e o escorredor de louça

Já não querem conversar comigo.

Jônatas Luis Maria

Existir



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As rosas de maio não se arrependem.
Amadurecem sem desejos,
sem ressentimentos.

Os dias do Sul são distantes do sol.
É terra isolada do mundo,
pensamento que delira nas nuvens.

Outubro tem a cor de outubro.
Um tom sem nome nem mesura,
acordes aquosos escorrendo

Relógio de Dalí.

Aos que restam, silentes e distantes
fica um gosto de lonjuras.
Ausência do mundo dentro do mundo.

Cortina de segredos ante a face,
e a foice desliza no agridoce dos olhos.
Flor do pântano no pranto de quem fica.

Deixam-se todas horas a navegar
por baías de tristeza até o fim do mar.
Falua do coração descuidado, sem farol,

sequer estrela guia, entre escuridões.

Jônatas Luis Maria