Emília

___________


Peripécia
esse jogo de esconde-esconde.
Malícia em que se disfarça olhares.
Na roda de passar anel sentir tuas mãos
e depois sorrir timidez
com as mãos vazias.


É quase lúdico percorrer às cegas
tua silhueta fugidia nos espaços,
entremeio de estações.
Um pouco mais triste a vizinhança
dessa casa de brinquedos.

Quão sombrio é o conto de fadas
de saber tanta mágoa em tuas orações?
Que temor incompreensível da noite
quando ao acender as luzes num susto
tudo que se encontra é sombra e eco!

Esse quebra-cabeças incompleto
das peças que faltam, paisagem rompida,
cena eternamente sem fim.
Para os dias de chuva restam lápis de cor,
caixa de dominós para enfileirar em letras
e derrubar inteira a palavra adeus.

Ao lado da cama velhos cadernos,
noutro lado cartas de amor.
Que lugar para guardar segredos,
senão o criado-mudo?

Sobre a cabeceira um anjo de gesso,
cujas asas foram coladas, sem mais voejar,
repousa suas mãos unidas em prece
e segura um retrato de tardes distantes.

Lá no canto oposto do quarto
repousa um velho palhaço de corda.
Recorda. Tem olhos redondos de medo
e traz estampado na roupa puída
a pasma e embotada palavra
Alegria.


Jônatas Luis Maria

Sobre todos os monstros

___________

Dança uma legião de demônios no recinto.
Catam valquírias a canção do amanhã.
Amanhã não há.
Sons terríveis cintilantes
arrebatam a tristeza nos meus olhos.
Escorre humor vítreo colorind’o chão.


As bruxas soltas na cozinha
preparam um caldo de caos tremendo.
Desossam lembranças sobre a mesa de jantar,
expondo a todos o mais íntimo de mim.
Porque segredos já não há.
Facas cegas aniquiladas
mastigam memórias e um sonso adeus
que nunca tem fim.

Esses dragões queimando livros,
vermes devorando tapetes. Rios
de mágoa desarrumando a cama.
Não há areia nos meus olhos abertos.
A mão pesada dos deuses tropicais
desata os nós do meu destino
estica uma linha reta em meus cardiogramas.

E as caveiras na sala de estar, bebem o vinho
que guardei para os dias especiais.
Solfejam bebedeiras que esqueci,
mas o remorso já não há.
Mariposas desacatam a’utoridade das luzes
e pousam sobre mim seu pó de reticências...

Anjos da horda cabalística em guerra,
sobre os espinhos de meu cadáver,
alheios a este escuro observar.
Porque a esperança já não há.
Trespassam espadas de apocalipse
entre entranhas da fotografia
e tudo se dilacera enfim.
Tudo apodrece, e na TV
um padre me diz amém.


Jônatas Luis Maria
Pode ser meu nome, só meu peso,
só esmero e luxúria. Capricho
de quem se solta no abismo.
Pode ser a cor das paredes, brancas,
dos teus olhos claros, tua pele escura,
toda estética, mágoa ou toda coisa e tal.


Pode ser minha tristeza entrelaçada
ao trigo dourado e seco sobre a mesa.
Pode ser a fumaça dos incêndios
queimando camadas de meu vazio.
Um vento ameno, ao menos, de balançar
estas suaves catacumbas no sofá.

Pode ser a casa, ou ainda a ausência
que teu corpo causa na casa, lacerante.
Pode ser o espanhol da América Latina
que tão somente nós não cantamos.
Pode não ser só saudade,
mas não parece.

Inquietude do corpo e quietude da taça
de quem adormece. Pode até não ser amor,
mas e se não fosse?
Pode ser canção que lembra, canção que esquece.
Poderia haver canção, se você estivesse.
E haver chama, e cama e tudo
e trama, drama e nada.

Podem ser as gavetas, as prateleiras,
esconderijos mais ocultos de mim.
Pode acontecer o encontro casual
entre um pássaro noturno e as estrelas.
E não mais que de repente
teu retrato na estante vira ilusão,
esboço num papel rabiscado.

Podem ser as gravatas, a torradeira,
estragos abruptos causados pelo fim.
Pode naquele momento fatal
das nuvens sobrepostas ocultando sol,
não mais que de repente teu nome equivocado
ser a pronuncia
que vem antes da chuva.


Jônatas Luis Maria

Dos Remorsos

__________

Aos senhores donos do meu corpo
desculpe se há nele um eu que s’aniquila.
Mas é que pra vocês, sou apenas fonte
uma fonte que delira. E só delira.


Há algo em mim que te machuca e é meu ego.
Essa nuvem do que sou, por deus, é um demônio.
Farpa diminuta que espinha agride dilacera
e que pela vida inteira se suicida e desespera.

Perdão pelo meu suicídio diário.
Perdão pelo abraço e por minha partida.
Não sou eu, mas é sim a vida
quem aos poucos me vai levando.

Perdão se não sou quem é o dono
Dessa artimanha de se criar e se morrer.
Perdão se minha mão não há de socorrer
porque sou a morte e assim é meu viver.

Espectador que já não é, coisa entre as coisas.
Coisa alguma mas que mata sem remorso
qualquer um de nós que por ventura
se esconda pelos cantos e meu canto
é o canto de quem me dá a mão.


Jônatas Luis Maria

Para Todos.

__________

Quem grita para a tempestade:
traga-me amor e morte;
Quem com a rosa se dilacera,
que a carne de poesia lhe conforte.


E se tens no coração o ninho d’um pássaro,
que em ti se desacampe essa fúria de ventos.
Quem aos passos de pés sangrentos
ouve a esfinge que no ouvido sussurra...

Quem tem sonhos conscientes
e morre de vontades
de morrer.
Quem sonha com as tardes
e quem sonha sem saber...

Quem amalgamo silencia
os diálogos inacabados,
quem com a pele balbucia
aquele choro de amanhecer...

E quem constrói em si
o desejo de dizer: Amor e morte;
Que possa também gritar
que faça tu de mim
tudo aquilo que quiser.


Jônatas Luis Maria
Visto a enorme insensatez das nuvens,
decomponho a chuva
e recolho a mim, torpe e austero,
abraçado ao vasto indiferente azul do céu.

Vem ao longe, por um lado, uma frieza nublada
e esvazia segredos. Transforma a pele
nos sussurros ineficazes do sobrevindo.
Enquanto por outro lado, silente, uma limpeza
feita de luz e tarde aguarda seu abraço fatal.

É de repente tão de repente que escurece.
O dia se fecha como se fecham os olhos
na solidão imprópria das tardes quentes.
É de repente tão de repente que escurece.

Retidão exata das precipitações
exalando terroso odor de dia desacontecido.
A memória distante dança e se mistura no vento,
balança na infância infinita e longínqua.

Há no ar, portanto, resguardada ciranda.
Traz consigo inexplicável saudade,
como se viesse carregando há séculos
as memórias do mundo inteiro.

No mais tudo é silencio no esperar da chuva.
No mais tudo é nudez.
Retidão exata das precipitações.


Jônatas Luis Maria

A Flor Imaculada



___________
O suicídio cotidiano é perfeito.
Disfarçado em forma e cor
pelas contas mal pagas, por amores perdidos.
A luz do dia se apaga
em noite tragada de noite bebida.

É como se delicada a infância voltasse
na luz do sol pela ranhura da janela
igual tempo parado em sua porta
como um filho voltando pra casa.

Levar os brinquedos do amor
na brincadeira de viver saltimbanco.
Descolar faces mil que se colaram
aos dias descoloridos.
Contrastam máscaras, sem o rosto,
com a marca dos olhos que se foram.

Cresce a mágoa eterna no entornar da noite
Até o entorno da manhã seguinte.
Na barba mal feita, no cabelo curto.
Nas vísceras gemendo o desabrochar da fome.

Que a glória dos dias leve-nos daqui!
Quisera eu ser uma mesa, um papel.
Quisera ser a tinta destas linhas, ou pedra.
Qualquer coisa inanimada, tão quieta,
sem resquício de história
no desdobrar inútil da existência.

Ansiedade de viver por ansiedade de morrer.
Mostro-me as pessoas disfarçado atrás da mobília.
Mostro-me a mobília disfarçado atrás das pessoas.
Quisera ser lágrima nos olhos de quem amei.
Quisera ser indigente nas ruas da metrópole,
ou o sorriso do palhaço mais triste que existe.

E temos moedas, botões, insígnias.
Pés descalços, mãos calejadas,
trompetes de improvisar a escuridão
e pedras para quebrar invernos.

Foi-nos dado um futuro para matarmos!
Suas nuances alvejadas, a alvura enegrecida
a luta nos foi privada, e a causa se perdeu.
Moramos em altos edifícios
e só as bruxas nos alcançam.

Fomos presenteados com lápides, pregos, cirandas.
Agraciados com prata, fogo e algodão.
Nossas armas automáticas não disparam.
Nossos disparos se dispersam em disparates
e díspares marchamos no céu cinzento
lamentando o dia em que caímos das estrelas.

A noite perdura, mas sem a causa.
A vida perdura, mas sem paixão.

Nenhum movimento existe! Nenhum!
Tudo estanque calado em abismo profundo.
Só o sol escaldante escandaloso deserto.
Rochedos ressurgem de todos os olhos,
tornados e ciclones em todos os silêncios
e o anjo do infinito repousa sobre pedras.

Lá estamos entre seus cabelos, suas preces.
Adiante sua face faz-se nos encontrar dançando.
Intenso jardim de tinturas frescas, verossimilhanças.
Viscosidade inquieta na existência em óleo sobre tela.
Precipitam-se tempestades nos sorrisos tímidos
igual rosa esquecida entre os mundos.

Repousamos solenes na linguagem da fala.
Refletimos o pesar da noite malfadada,
vislumbramos a fada velha sem desejos,
e solfejamos canções esquecidas
no peito gelado da modernidade.

É tão rara a vida! E jogamos pela janela.
Tão frágil! E nossos filhos na sarjeta.
Nem clero, nem laboratório, nem bacanais aflitos.
Nem governos, nem fronteiras universais!

Medo, medo, medo! É tudo medo nos corpos!
Nossas carcaças flutuam em canções eletrônicas
nos infartos de uma bossa nova esquecida.
O apocalipse é orquestra sinfônica pós-moderna
ecoando a eternidade tão louca do caos.

A boca do homem é medo constante inigualável
e Constância corta asas do destino recorrente infalível,
e bêbados cantamos o hino da independência imaginária.

A canção consola a’lma sem memórias
e tudo vai girando normal inatingível digital e prece,
D’um sofrimento sem igual que consta
Entre as linhas do manifesto comunista.

Essa raça segue consternada ao exílio de existir.
Proclama pela boca embriagada a carência sobreviva.
Desata no discurso do passado, o presente natimorto
e liberta num jazz endoidecido o futuro desigual de toda gente.

Gastamos a cada manhã o talento de se fazer arte marginalizada.
Galgamos a manha de sobreviver por pratos de comida.
Atentos à fúria de deuses esquecidos
estamos mortos,
mas procuramos pela vida.


Jônatas Luis Maria