Anima Anônima - Ensaio sobre o fim


Não tarda deixa de bater o coração.
Sem haver olhos para orquídeas, nem velhas construções.
Sem se ter ouvido para sabiás, canários ou canções.
Não tarda falhar instinto primitivo ou consciência universal.
O que nos perturba deixará de perturbar. Quem nos ama
não mais amará, e quem tu amas não amarás.


Não tarda cada movimento peculiar do mundo
deixar de se mover e não se movendo perder o sentido.
Nada poderá ser sentido, e o que sentes não sentirás.
Cessar-se-á a sensação de ser e de estar.
Não tarda o silêncio que nos é negado
ser moto continuo perpétuo do que já não há.

Não tarda a questão mais complexa ficar sem resposta
e a arte em si deixar de trazer salvação particular.
Não haverá coisa inanimada nem coisa que se move.
Não tarda sermos incapazes de cantar ou aplaudir.
Nossas mãos nada poderão tecer, compor ou esculpir.
Bocas serão silenciadas e olhos serão apagados.
Ouvidos inaudíveis até o não haver.

Não tarda o que é prolixo ser sintético,
O sintético diminuto, abreviação e nada.
Paixões serão histórias, depois nem isso.
Tapas não serão, beijos não serão.
Não haverá balanço, ou criança para balançar.
Não tarda não haverá pôr-do-sol nem carinho
nem lembrança.

Jônatas Luis Maria

Freud, Jung, a morte e o teatro


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Sempre que me acomodo à janela nos dias de chuva
espero ver o fim do mundo.
Se ando de mãos dadas com a providência,
vez ou outra me beijo com o demônio.
Entidade absoluta do caos.


E a larva da ansiedade, a quem tudo pertence,
que espere. Serei logo seu inteiro amante
de laços e abraços em romântica gaveta.
De fora, arquitetura intensa. Cobre e mármore.
Por dentro, escuridão.

Mas que espere! Por hora abro toda casa
deixo entrar a luz que a luz salvará
os muitos pós-modernos que somos.
Infinitos personagens de múltiplas fases
nos absurdos, épicos
e crueldades de arena.

Eu sou Hugo, mas por aí me chamam Werther.
Há quem diga somos Ida, e isso é a verdade.
Para nós, legião de uma única angustia,
resta a cena e a certeza de todos os finais:
A face obstinada de três bruxas sorridentes.

Jônatas Luis Maria
Estilhaço das tramas,
meu cansaço.
Remoído na cama
sol de concreto, no terraço.

Sal de remorsos.
Minha lama.
Algoz violento, o diário
aniquilando eu e você
torpor do tédio!
Livre seria o galope
não fosse a cegueira do bicho
rumando sem destino,
sem rumo, sem norte sem nada.
Mate quem fez a canção.
em suma sempre lembra você
face que esqueci. Eu sou um Narciso
enlouquecido entre espelhos de Alice.

Jônatas Luis Maria
Por aí
No entrave das bocas,
na menina dos olhos
Bruxaria
soltando miados.

Tranca nas portas,
travas na língua
Medo
escondido nos cantos.
Entre ossos do oficio,
Partos e necrotérios
Caos
Pairando metáforas.
Num gole – Numa rua,
em ziguezague sem norte
Nós
(ul)trajando destino

Jônatas Luis Maria

Para Hilda e Lispector

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Tempo de desaparecer,
recolher asas ao ninho austero.
Tempo da janela donde espero
pelo menos a luz do amanhecer.


Lembro um dia em frente ao mar
esperar nas horas tua chegada
até que se cessaram as ondas.
Até que se acabou o mar.

Sonhei um encontro e senti teu perfume
ainda no sonho percebi a ilusão tamanha.
Sonhei que morri uma morte tremenda,
assim acordei e não era pó, mas fragmento.

Tempo de desaparecer não é meu tempo.
É pessoa que passa e é perfume,
tu que não veio junto àquelas ondas.
O mar se acabou, não veio a luz do dia
e se desapareço, é em tua escuridão.

 Jônatas Luis Maria
Borboletas na tempestade
assim o pensamento se recolhe.
Vida junkie em meio à chuva
e um café com gosto de antiontem
que fica para amanhã.

Reticências são mais que infinitos,
são a vida inteira na fumaça de fumar.
Amigos compõem acordes noite adentro,
estudam ciências ocultas, poemas indiziveis.
Escutam seus fantasmas e seu eu lírico.
Eu lírico tento me decompor nas estrelas.

Não não não! Do pó ao pó só metáfora,
Metafísica das utopias quando se toma trago.
Brainstorm nos banheiros de botecos.
Bestialidades à mesa familiar de direita
quando nascemos à esquerda dessa mesa.

Eu sou o "you're not" nas aulas de inglês.
Rien de rien nas calçadas parisienses,
Rimbaud não nascido, Mill dos hospícios.
Coronel de ladeira abaixo.

Borboletas na tempestade
e o sol dos meus olhos jamais se põe.
Casulos em pantone, pedaços de Molière,
Modiglianis e restos de comida pela casa.
Resiliências, resumos e raticidas reunidos,
que foi a vida senão resquícios? Remédios para ansiedade.

Quantas vezes morri sem que ninguém percebesse?
Todas elas. Envelheço de segunda à quinta,
reservo as sextas para os velórios. Aos sábados sou enterro
e aos domingos esquecimento.
Sou blasè, Balzac e Mallarmé,
mas nunca fui um Robinson Crusoe.
Henry sem Paris, Miller sem mulher,
mulher sem ser Cecília.

Ciranda sem a infância para brincar.
Borboletas na tempestade
são todo pensamento que se estraçalha
em meio a essa chuva de domingos.
Borboletas na tempestade
tem nos cantos melhor repouso.

Jônatas Luis Maria

Existir


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As rosas de maio não se arrependem.
Amadurecem sem desejos,
sem ressentimentos.


Os dias do sul são distantes do sol.
É terra isolada do mundo,
pensamento que delira nas nuvens.

Outubro tem a cor de outubro.
Um tom sem nome nem mesura,
acordes aquosos escorrendo.
São relógios de Dalí.

Aos que restam, silentes e distantes
fica um gosto de lonjuras.
Ausência do mundo dentro do mundo.
Cortina de segredos ante a face,
e a foice desliza no agridoce dos olhos.

Flor do pântano no pranto de quem fica.
Deixam-se todas horas a navegar
por baías de tristeza até o fim do mar.
Falua do coração descuidado, sem farol,
sequer estrela guia, que navega entre escuridões.

Jônatas Luis Maria
As luzes dos postes ofuscadas de neblina
são fantasmas.
A própria névoa é um fantasma
e meu cadáver à janela, transita
nas calçadas manchadas de crime, acidentes,
tropeços e desencontros.
Bem-vinda a chuva que leva manchas,
que apaga indícios.
Bem-vindo outono que acinzenta
minha cara embriagada.
Aniquila remorsos da face a terra.

E que sejam meses em que a noite existe
para sempre ocultado qualquer claridade,
qualquer clarividência.
Porque meu cadáver pretende
nada ansiar.
Que a descoloração dos dias esconda crimes.
Que a exatidão das folhas que desabam
oculte a mágoa nos meus olhos que escurecem.
Deixe que a chuva lave ilusões, lave calçadas,
e o sangue dos atropelamentos e assassinatos.
Que reavive o cheiro do mofo, dos bueiros,
dos cafés sujos e mal amados
onde há séculos me decomponho.
Que o vendaval diário esfrie as xícaras
e o carnaval de inverno redesenhe as máscaras.
Que a cidade se tranque, se esconda, feneça
e todo cheiro ocre cause desconforto à mesa.
Que as paredes escorram vicissitudes, máculas,
desalento.
Como há de ser o frio no corpo de quem falece.
Que os cemitérios tenham ares de abandono
para o deleite das estatuas.
Que o outono traga, como há de ser,
a limpeza sobrenatural das adegas,
o sono das florestas e o adormecer de videiras.
Que os vidros embacem, o gesso apodreça
e a porta das moradas se congele.
Que o mundo adormeça
na canção murmurosa dos demônios.

 Jônatas Luis Maria
Olha esse céu, meu amor. Como é claro esse dia.
Carregado de essências de uma infância
que ficou no século passado.
Parece que se pertence ao DNA das coisas.
Cada cheiro, cada movimento, cada brisa
e farfalhar de árvores, se transforma em lembrança.
Mas não propriamente dita, visível,
talvez lembrança que sequer acontecera,
talvez sutil demais para qualquer imagem.
Ou talvez tão bela, que dá medo reviver.
Em todo esse azul derramado sobre o mundo,
em meio a paisagem verde clara, levemente ociosa,
uma saudade doce, delicada e vagarosa
paira sobre silêncios e quietudes lilases.
Sem pássaros, sem brisa ou voz.
Parece que se ouve a quietude dos amores
passados que descansam e dormem
sobre o peito vacilante de amores futuros.
Hoje, parece que se encerra toda uma era.
Silenciosa passagem do tempo
como há de ser tudo aquilo que é finitude.
Hoje não há que ouvir, o mundo é silêncio.
Não há que ver, porque tudo é sentimento.
Até a distância infinita entre as flores
parece proximidade de mãos entrelaçadas
que passeiam leves e silentes nas praças
de outras cidades.
Seria inteiro esse dia tão imaculado
a resiliência de um coração partido?
Ou seria a solidão das flores sobre as mesas domésticas
nas casas vazias do mundo?
Quem poderia saber? Quem meu amor?
Um pensamento intimista e profundo
certamente saberia.
Talvez seja melhor apenas divagar
e devagar, como todo esse azul,
ser somente parte desta cena momentânea
e infinitamente quieta.
Hoje, pensar profunda e intimamente
traria à tona a saudade de uma vida inteira.


 Jônatas Luis Maria

Simulacro



Quem és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.
Do Desejo - Hilda Hilst
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Das vezes em que o quarto se torna calabouço
é para que eu sonhe sobre a laje fria
do leito dos amores que enterrei.

Quando a tempestade urra como demônios
escurecida estraçalha janelas,
preparo um café para melhor receber o fim do mundo.

Todo um arsenal a espera de oponentes,
abro a porta e só encontro amigos. A pólvora
favorável à implosão, fará inveja ao pôr do sol.

Cada fantasma que sai das gavetas e esquinas
troca minhas músicas, tranca meus sentidos,
revira meus miúdos equívocos.

Não trazem cerveja, não trazem cicuta.

Essa cova que se abre na borda dos dias
rasga a mão fadada revirar a terra íntima da idade
e já se foram três palmos, palmas pra mim – lavrador incansável.

Aos pássaros resiliência. Aos vermes – Tudo.
Que morada é essa? Que consome meus centavos
que é propícia a se plantar as flores e às vezes, chora comigo.

Que sonhos estranhos se sonha sobre cadáveres
e pelas estantes, entre livros, esse poço que cheira à saudade.
As taças de vinho, as panelas e o escorredor de louça

Já não querem conversar comigo.

Jônatas Luis Maria