As mil e uma noites

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A face precoce destas dores é estrela-guia às reminiscências:
Facas cegas de fé adornando todo mito, toda caverna;
Antes, pedaços de pedra lascada, depois, aço inoxidável.
Hoje carnes entrelaçadas, amanhã o sentimento de perda.

Não há museu que guarde tanto passado, nem ciência a prever toda mudança,
Nem há crença que traga esperança, nem sótão para guardar os brinquedos.
Não há álbum de fotos que não possa ser queimado,
Nem água turva onde a jóia possa ser escondida.

Não há Fausto nem paraíso perdido, nem escura floresta nem caminho para as índias.
Se em toda madrugada me refaço iguais a tantos
É pra manter-me perto ao teu disfarce. E se tu nunca vens
Recolho-me ás minhas madrugadas, e beijo o teu desdém.

E serias tu, tal qual eras antes? Ou somos nós ainda mais modernos?
Seria eu alguma diferença na soma de todos estes dias de inútil distância?
Somos na verdade as doses todas que bebemos, e estamos grudados
Ao coração dos velhos encontros e das mesmas mesas, aonde houve desencontro.

Rasgo-te em migalhas nos discursos. Choro depois os remorsos.
Atiro flechas em direção à tua retórica, e o alvo era ainda o coração.
Quem sabe assim eu te matasse, ou assim eu me morresse,
Quem sabe na sobra dos versos e dos dias, haja ainda qualquer coisa de paixão.


Jônatas Luis Maria

Dos dizeres do tempo

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E restam somente, tão somente, os alexandrinos.
Ficam os dias usados, delinqüentes empilhados
No cárcere da desmedida memória e seus sinos,
E a vida vai ficando dividida na pausa dos miados.

De que valeram tantos gritos incomuns, incontidos
Se na manhã seguinte, nenhum dos teus, pôde ainda,
Remendar o que faltara. Ébrios e tão entristecidos
Que todos destilaram sérios, a inevitável míngua.

A copos de desespero combateram a foice peregrina,
Contra a façanha certa de ceifar-vos toda resistência.
Inúteis gritos esconderam-se atrás à face da retina,

Pois num ato baldio, dado aos parvos na seqüência,
Defere a lança, o pai sombrio, que a todos elimina;
Seu voto de Minerva diz sutil: Levo-te toda essência.

Jônatas Luis Maria

Flor do Remorso

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Pudera ainda viver um amor tão doce de emoção,
O sentimento de páginas no branco das esperas.
Nas metáforas esclarecer-se, redimir-se de si só
E dos pecados anteriores, feito anjo, alheio dormir.

Pudera reviver aquilo que antes não pôde viver
E que por algum pormenor se passou ausente.
Sem resquício de consciência retratar o que não foi
Para seguir então adiante, adiante e tão somente.

Mel gelado das essências é o passado adormecido
Que retumba, remete a tudo que fora deixado de lado.
De remorsos incendeia o ventre lacerado de si mesmo,
Agita um choro que de tão quieto não se esvai ainda.

Este pranto enclausurado na garganta ressequida
É o desconsolo dormindo silencioso atrás dos olhos.
Na doçura que se esvai de fronte ao espelho sombrio
Passa de relance o amor vivido à pena nas entranhas.

Jônatas Luis Maria

Estética da Mágoa

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“Devora-me, deforma-me à feiúra. Por que não tu?”
Marguerite Duras

Consternações de que o peito se alimenta,
Canção idolatrada dos pedaços do destino.
Ser um quarto vazio condenado ao tétrico
Esquecimento de antigas canções de ninar.

Pedaço de ternura atirada à margem do descaso;
Garganta incontida d’um latente desespero
A emanar o rugido insensato da solidão
Ecoando o intangível silêncio das indiferenças.

Miasma mutilado por pétalas de sensibilidade
Rasgando em versos o todo indivisível sorriso.
Fragmentado fantasma, multifacetado, no entanto,
Tantas máscaras possuir e nenhuma servir-lhe ainda.

Todo multiverso condensado em uma lágrima
Pendurada em rosto de cristal estilhaçado.
Sobra unânime de todos restos d’alegria;
Um rastro, deixado por um amor que passou.

Jônatas Luis Maria