A Flor da Pele



— Você é a nação. Nossa nação.
O país com quem me deito.
Perco-me em tuas avenidas 
e interiores. E calabouços.

Escondendo-me 
em tuas articulações 
de guerra civil.

— Você é a guerra.
e sobre teu peito, eu sou a paz.

Tua face é de corcéis febris
soltos pelo campo
e violência.

Nossos corpos de gelo
se misturam no tempo...

— E você é a arte
causando inundações.

— Correndo na veia pós-moderna.
Explodindo o coração
da ditadura.

Somos silêncio!
E ausência.

Ausência é tudo aquilo que temos

e o tempo que havia antes
atravessa nosso corpo e segue
quebrando as janelas.

— Você é a beleza
e a destruição.
Enchente no meu corpo de barro.

— Nossas linhas se cruzam em design surreal
e no entanto...
— Temos fome. Uma fome desmedida de silêncios.

(...)

Tua boca é de terra.
Espaço de caça, e nascimentos.
Mas teu rosto é um deserto
onde a gente se perde de sede.

— Tua boca é de domingos.
Relógio de sol, nos teus olhos de partida.
Teu sangrar e teu sorrir
nem que fosse tímido.

— Desabam prédios
Em nossos corpos de metrópole,
deixando poeira e timidez
num sorriso de finais.

E somos democracia
perambulando pelos bares.

— O mundo acabou em nós dois.
e somos o que somos

tudo desabou no quintal, no universo,
e o que mais forem nossos corpos abraçados.

— Teus olhos se põem com a lua
e sacrificamos montanhas 
e compomos canções e você me ensina a dançar
para sermos rituais à beira mar.

—E quem é o mar?
Quem é o pescador? Quem é a pesca?
Em qual plano vivemos realidade
e aonde temos importância?

— Somos areia.
— Somos as conchas...
— E somos o barco...
— e o sal.

— Que são de sal as cidades
circulando em nosso sangue,
        e de ferro os anjos da guarda
            resgatando a inocência
de abismos profundos.

— Precisamos repartir o pão.
E unir os corpos.
Quantos sonhos em sonhos
            vivemos?

— Sem você sou a noite.
— Sem você sou o dia.

— Aqui em tua pele estão todas as florestas
todos os pássaros e flores
Tu – Amazônia. Pantanal e fera
que às vezes é sertão e me abraça
em secura de sede.

— Espíritos sem água
na América do Norte.

(...)

Você é uma igreja.
Templo abandonado
À minha pele de espinhos.

Teu altar é de rosas
e espadas.
Espadas que cortam rosas.
Rosas que derrubam espadas.

Nós estamos em tudo.

— Você é a música!

— Somos orquestras.
Orquestras de silêncio.

— Teu corpo é de planetas.

— Somos corpos celestes. Recém nascidos
em algum lugar e tudo muda quando nos chocamos,
rompendo correntes de Kitnets e seriado de TV.

(...)

Você é um mendigo;
Um homem sem nada. 
Num plano estranho. 
No lugar errado
aonde o tempo é tolice.

— E você é a estratégia.
Em tua arquitetura caótica
sou um mendigo
lambendo tuas periferias.

— Um corpo sozinho
vagando nas ruas d’um corpo lunático.
Dois corpos, dois pontos perdidos...
— No espaço dos homens grandiosos.

Eu nos hospícios. Nos bueiros
e quartos de quimioterapia.
Enquanto tu era a vida
nos regimes fascistas.

Foste a indústria de cada dia,
e eu o operário de todos dias.

— Escravos, índios e imigrantes...
— Nas minas de diamante
da coroa portuguesa.

(...)

No tempo dos homens.
No templo
dos homens.
— Até o último deixar de rezar.

— No homem...
— Enquanto houvesse
Homem...
— Havia esperança.

— Você é o amor!
— Somos um suspiro.
— Uma gota.
— O sonho
— do sonho.

— No silêncio.
onde todas sinfonias são ouvidas.
Na ausência
aonde tudo é tocado.

— Você é a linguagem.
Torre de Babel nos albergues de estudantes.

— Somos órbitas cruzadas nas ruas,
avenidas de caos e luz. Onde a geometria
é a corrupção de meninas estrangeiras.

Anúncios de jornal
no homem noturno
de apartamentos.

— Você é um grito.
Um grito na solidão dos bares.
Das pensões e da cachaça
entregue na tribo dos índios.

— Somos os filhos do sol.
Latinos do paraíso tropical.

— Índios.

— E você é o cacique.
Perdido em euforia
na dança da chuva.

E chove sobre nós todas as cores. 

— Somos espelhos.
— Espelhos no prisma.

— Nossa trama é de febres.
Ardem nossos corpos na febre de dias de cão.
Lobos uivando a noite boêmia.
O que fizemos de nossas vidas?

— É aquilo que pulsa em pintura
rupestre no teu corpo africano.
No som dos rituais indizíveis.
No homem em êxtase...

— Com aquilo que lhe sustenta
a fome de respostas.

— Você é a mão febril de martelos.
Esta é razão da minha febre.
Minha insônia, na terra do sono.
Uma insígnia tatuada na testa.

Sinais de fumaça e apitos.
Formigas 
que mal sabem o que fazem.
Tenho febre e deliro no teu seio capitalista.

— Onde estou o tempo inteiro?

— Quando penso no tempo,
O tempo nos transcorre
E escorre você pela cama
Num transe amarelo natimorto
            de Van Gogh.

— Busco meus guias nas poças d’água,
Onde voam submersos 
os filhos de Hiroshima,
numa tempestade de incoerências.

Navego nas poças d’água
entre grandes ditadores
e a água balança na música
imparcial dos mísseis.

E na inércia da água
misturo-me ao sangue das crianças
que vejo chorar no fundo dos guetos,
das favelas e da democracia.

E você é a pólvora. O plutônio.
Fogo artificial queimando sonhos
e famílias em minha pele hereditária.
— Um soldado.
No fundo do beco.
Um soldado sozinho...
— No barulho dos tanques.

— No caos.
— No ódio.

Ocupo de pedras os espaços vazios
Daquilo que ignorei para chorar depois.

— Você é a rocha.
A rocha que sangra água que sou.
Em teu pêlo de rocha escorro rio de mistérios,
Formando caminhos sinuosos na cultura dos povos.

— Somos notas de jazz
Entrecortando ruas do submundo.
Numa velocidade de cocaína e medo.

— Somos a chuva,
E chove para lavar o sangue.
Limpar o óleo nos finais de semana.

Livrar as nuvens do ácido nocivo,
das chaminés a queimar as penas
das aves claustrofóbicas
que comemos sorridentes.

— Somos liberdade e arte
Riscados no muro das penitenciárias.

—Sussurros no espaço do eco. 

— Somos abraço...
— E displicência.

— Somos e estamos
Grudados no verbo que viaja e vê
As paredes sujas, 
dos asilos esquecidos.

— Nas histórias de velhos sem sorte.
Fomos os de antes
e seremos os de amanhã.

Somos e estamos. Implícitos.
Excêntricos numa tela 
que se apaga .

— Apreciados e agraciados por estrelas
e buracos negros dividindo o mundo
em oriente e ocidente.

— Planetas e gente, e espelhos.
E gente que é gente
E é humano e é pedra e é arte.

— Mesmo sem petróleo!
Ou na troca de moedas e racismos
de narcisos que julgam 
mais valiosos seus vícios.

— Donos da carne (dos outros) 
e tão somente dela.

(...)

— Você é a inocência.
Minha terra povoada de crianças.
— Somos utopia.
— E o direito de viver!

— Não se pode pregar o amor
Nas ruas de luzes publicitárias.

— Somos o delírio eterno.

— Tentando compreender a igualdade entre os homens.

— Somos civilização.

(...)

— Frio. Tenho frio.

— O frio da guerra fria...

— Somos tolos!

— O futuro...
— O futuro.
— O futuro são videiras que florescem.
É ave que voa livre
pelo céu azul.
— Nossos filhos
correndo soltos pelas flores.

Nossos corpos são povoados
de abismos e quedas infinitas...
O que será de nós?

— Ah, teu corpo palpita
e se excita na luz da manhã.

Há um calor de suores que me agita
                    em terremotos.

— Um deus asteca passando pela terra
semeando vulcões.

— Meus mistérios se perdem nas estações
    e o vento me desfaz, fazendo-me lua.

(...)

— Teu silêncio faz dançar as flores.

— A flor da pele está na pele
    e o desabrochar da flor da pele...
— Quando a pele se toca...
—Nos transforma em deuses.

Jônatas Luis Maria